quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A Lover's Complaint

de William Shakespeare


VINDO de um monte cujas reentrâncias ressoavam

Uma lamentosa história de um vale contíguo,

Meu espírito se ergueu para ouvir essas duas vozes,

E me deitei para atentar ao relato tão tristonho;

De longe veio uma irresoluta e pálida mulher,

Rasgando papéis, partindo alianças de noivado,

Sucumbindo às tormentas de sua tristeza.


Trazia na cabeça um chapéu de palha,

Que protegia seu rosto do sol,

Onde se podia entrever

Que um dia fora belo:

O tempo não ceifara a juventude,

Que de todo não a abandonara; mas, apesar da divina ira,

Ainda lhe restava alguma beleza no rosto envelhecido.


A toda hora, secava os olhos com o lenço,

Bordado com distintas iniciais,

Umedecendo na água salgada as imagens sobre a seda

Que o lamento transformava em lágrimas,

E sempre olhando o que ali se lia;

E sempre se lamentando de sua aflição,

Gritando ora alto, ora baixo.


Por vezes, seus olhos se perdiam na distância,

Como se quisessem subir aos céus;

Por vezes, distraíam-se e voltavam

A pisar na terra; por vezes, estendiam-se

À frente; outras, olhava

Para todo lado e, sem se fixar em nenhum deles,

A mente e a vista misturavam-se distraídas.


Seu cabelo, nem solto, nem preso num penteado,

Dava-lhe um desleixado ar de orgulho

Pois, parte, solto, descia sob o chapéu,

Pendurado ao lado de seu rosto pálido;

Parte ainda retido sob a fita,

E com certeza dali não sairia,

Apesar de mal preso e mal trançado.


Tirou de uma sacola mil pedrinhas

De âmbar, de cristal, e fios de conta,

Que ela, uma a uma, arremessava no rio,

Da margem onde estava a chorar;

Usurária, aplicando cada lágrima,

Ou como as mãos reais que não largam o butim

Chorando por umas, mas suplicando por todas.


Puxou inúmeros bilhetes dobrados,

Que lia, suspirava, rasgava e lançava no rio;

Partiu vários anéis de ouro e madrepérola,

Pedindo que estes afundassem na lama;

Encontrou mais cartas escritas com sangue,

Amarradas com cuidado com fita de seda

E lacradas para que ninguém as lesse.


Estas, umedeceu muitas vezes com suas lágrimas,

Beijou-as, e pôs-se a rasgá-las,

Gritando: ‘Ó, falso sangue, apanhado de mentiras,

Que falso testemunho me prestaste!

A tinta seria aqui mais negra e mesquinha!’

Dito isso, no auge de sua fúria, rasgou as linhas,

Sua grande ira dilacerando as palavras.


Um velho pastor que ali andava com seu rebanho –

Por vezes, um gozador, que a turba conhecia

Do tribunal, da cidade, e que deixava passar

As ágeis horas, observando-as em seu voo –

Correu para atender a dama aflita,

E, privilegiado pela idade, queria saber,

Em resumo, as razões e os motivos de seu tormento.


Então, abaixou-se, apoiado em seu cajado,

E com o devido respeito sentou-se ao seu lado;

E novamente lhe pediu, estando assim sentado,

Que com ele dividisse sua aflição:

Se estivesse ao seu alcance o poder

De aliviá-la de sua dor tão violenta,

Prometia-lhe fazê-lo por caridade.


‘Padre,’ ela disse, ‘embora veja em mim

A injúria de tantas horas graves,

Não deixes que lhe digam que sou velha;

Não a idade, mas a tristeza, me domina:

Eu ainda poderia ser uma flor em botão,

Fresca e bela, se tivesse amado

A mim mesma, e a mais ninguém.


‘Mas, ai de mim! Cedo demais segui

O impulso da juventude – para cair nas graças –

De alguém que a aparência da natureza me mostrou.

Os olhos das mulheres fixavam-se em seu rosto:

O amor procurava um pouso, e alojou-se nele;

E quando em seu formoso corpo se aninhou,

Sentiu-se de novo protegido e endeusado.


‘Seus cachos castanhos pendiam em desalinho;

E toda vez que o vento soprava

As mechas sedosas tocavam seus lábios.

O que é doce fazer, faz-se com prazer:

Todos que o viam sentiam-se encantados,

Pois em seu rosto se entrevia

O que se julga haver no Paraíso.


‘Seu queixo mal trazia sinais viris;

A penugem de sua fênix mal aparecia

Como veludo ralo sobre a pele lisa,

Que mais mostrava a nudez do que a encobria:

Porém, seu rosto assim se tornava mais amado;

E os belos amores oscilavam em dúvida,

Se estariam melhor com ele ou sem ele.


‘Suas qualidades eram tão distintas quanto suas formas,

Tinha a fala doce e franca de uma donzela;

Mas, se por homens fosse provocado, se enfurecia

Como a tempestade que só se vê entre abril e maio,

Quando os ventos sopram doces, mas descontrolados.

Sua rudeza que lhe autoriza a própria juventude

Coroava-lhe a falsidade com o orgulho da verdade.


‘Ele cavalga bem, e muitas vezes diziam:

‘O cavaleiro empresta ao cavalo o seu furor;

Altivo ao sujeitar-se, nobre sob seu jugo,

Que voltas, que saltos, que galopes, que paradas ele faz!’

E a controvérsia aqui surgia,

Se o cavalo devia a ele tais proezas,

Ou se ele devia ao cavalo por ser bem dotado.


‘Mas rapidamente o veredicto a seu favor foi lançado:

Sua habilidade natural dava vida e beleza

A tudo que lhe pertencia, e a todo ornamento,

Perfeito em si mesmo, não por acaso:

Tudo se tornava mais belo por sua causa,

Vindo tudo por acréscimo; e sua beleza proposital

Não o tocava, mas a eles emprestava sua graça.


‘Da ponta de sua língua dominante

Surgem todos os tipos de assunto e questão,

Respondendo prontamente, e cheio de razão,

Despertando e adormecendo em vantagem:

Para fazer o choroso rir, e o risonho chorar,

Ele possuía o talento e a diversa qualidade,

Captando todas as paixões segundo seu desejo:


‘Ele reinava em todos os corações

De jovens, de velhos; encantando a ambos os sexos,

Viviam com ele em seu pensamento, ou guardavam-no

Durante seus afazeres, seguindo-lhe a sombra:

Antes mesmo que desejasse, ele era atendido;

E diziam por ele o que ele diria,

Perguntavam seus desejos, e estes eram obedecidos.


‘Muitos conseguiram seu retrato,

Apenas para poder vê-lo, e nele punham-se a pensar;

Como tolos que na imaginação se apropriam

Dos bens que encontram em outra parte,

De terras e mansões, que passam a ser deles;

E se empenham mais em aproveitá-los

Do que o verdadeiro senhor que os detêm:


‘Muitas que nunca tocaram sua mão,

Supunham-se senhoras de seu coração.

Eu, infeliz, que vivia em liberdade,

E não devia satisfação a ninguém, senão a mim,

Fosse por sua arte ou por sua juventude,

Abandonei minha afeição ao seu poder e encanto,

Guardei o caule, mas dei-lhe inteira a minha .or.


‘Contudo, não fiz o que outras fizeram,

Nada exigi dele, nem cedi aos seus impulsos;

Pensando que disso minha honra me proibia,

Protegendo-a com a distância por segurança:

A experiência dava-me elementos

De novas provas, que ficaram como repúdio

Desta falsa joia, e de seu espólio amoroso.


‘Mas, que mulher pelo exemplo evitou

O destino fatal que deveria sofrer?

Ou por exemplos forçados, contra sua vontade,

Afastou os perigos que cruzaram seu caminho?

Conselhos podem nos proteger por algum tempo;

Pois, em fúria, o conselho é visto apenas

Como empecilho para despertar mais o nosso desejo.


‘Nem consegue abrandar nosso sangue,

Para contê-lo com a experiência alheia;

Sermos privados de prazeres que nos parecem tão bons,

Por temer os males que pregam a nosso favor.

Ó, desejo, estás longe do julgamento!

A necessidade provará por si mesma,

Embora a Razão chore e clame: “Este é teu fim”.


‘Eu ainda poderia dizer: ‘Este homem mente,’

E conhecia os padrões de seu charme escuso;

Soube onde suas mudas cresciam em outros pomares,

Vi como conseguia ludibriar com seu sorriso;

Conhecia as juras que usava para enganar;

Pensei que as letras e palavras fossem mera arte,

E bastardas de seu coração adúltero e vil.


‘E por muito tempo assim guardei minha fortaleza,

Até ele começar a me sitiar: ‘Gentil senhorita,

Tem compaixão de minha sofredora juventude,

E não tenhas medo de minhas santas juras:

O que juro a ti jamais jurei a alguém;

Por mais banquetes de amor a que me tenham convidado,

Até hoje nunca convidei nem cortejei ninguém.


‘Todos os erros que cometi por toda parte

São erros da carne, mas não da mente;

O amor não os cometeu: mediante ação eles sucedem,

Onde ambas as partes são falsas e pouco gentis:

Elas buscaram a vergonha e a encontraram;

E muito menos dessa vergonha permanece,

Quanto mais reprovação houver em mim.


‘Entre muitas das beldades que contemplei,

Nenhuma aqueceu meu coração,

Nem arrebatou minha afeição,

Nem encantou minha visão:

Eu lhes .z mal, mas nunca fui atingido;

Arrebatei seus corações, mas o meu continuava livre,

E reinava, comandando seu reino.


‘Vê, esses presentes que as moças me ofertaram,

De brancas pérolas e rubis vermelhos como o sangue;

Pensando, desse modo, falar de suas paixões

De tristezas e vergonhas, rapidamente ditas

Pelo branco imaculado e o rubor da ira;

Resultado do terror e do pudor puro,

Guardadas nos corações, mas brilhando em seu rosto.


‘Olha os cachos de seus cabelos,

Ornados amorosamente com veios de metal torcido,

Recebi de muitas e muitas donzelas,

Chorando e implorando para serem aceitas,

Acrescentando pedras preciosas,

E sonetos sentidos para ampliar

A natureza, o valor e a qualidade de cada gema.


‘O diamante – belo e resistente,

Apontava suas próprias qualidades;

A verde e escura esmeralda, que, ao ser vista,

Cura a visão débil com seu brilho;

A safira da cor do céu e a opala misturam-se

Em vários matizes: cada uma das pedras,

Sabiamente lavrada, sorri ou faz suspirar.


‘Vê, todas essas mostras de afeição ardente,

Oferecendo um amor cativo e submisso,

Fez-me a natureza rejeitá-los,

Mas ceder somente a quem devo me entregar,

Ou seja, a ti, meu princípio e meu fim;

Pois devem ser, por força, a ti ofertados,

Por ser eu o altar delas, e eu, teu padroeiro.


‘Ó, estendei, então, tua mão indescritível,

Cuja alvura é inigualável;

Leva contigo todas essas imitações,

Imantada pelos suspiros que arrancaste do peito ardente;

Assim, eu, teu ministro, ouço e obedeço,

Trabalho para ti somente; e para que examines

Todas as partes vêm em valores combinados.


‘Vê, este me foi mandado por uma freira,

Ou irmã beata, de piedoso renome;

Que rejeitou na corte um séquito de nobres,

Cujos raros dons faziam todos enlouquecer;

Pois era buscada por homens da alta fidalguia,

Mas mantinha-se distante e fria, e retirou-se,

Para dedicar ao divino seu eterno amor.


‘Mas, doce amada, que mérito há em renunciar

Àquilo que não se tem, em domar o que não resiste,

Ocupar um lugar que ainda não tem forma,

Ter paciência quando nada nos oprime?

Aquela que guarda a honra para si mesma,

Foge da luta sem ferir-se,

Velando-se em sua ausência, não em sua força.


‘Ó, me perdoa por me gabar com verdade:

O acaso que me fez vê-la

Naquele momento cedeu o seu ímpeto,

E agora deseja fugir de sua clausura:

O amor religioso extinguiu sua fé:

Para não ser tentada, cerrou-se entre muros,

E agora, para tentar, procura a liberdade.


‘Que poder tens, ó, deixa-me dizer-te!

Os corações partidos que a mim pertencem

Verteram todas as fontes em meu poço,

E eu verto teu oceano sobre todas elas;

Eu as domino e tu me dominas,

Para tua vitória é preciso formar

Um filtro de amor para curar-te da frieza.


‘Meus dons puderam encantar uma monja,

Que, em disciplina, na dor do sacrifício,

Acreditou em seus olhos quando começaram a atacar,

Cedendo a todos os votos e consagrações:

Ó poderoso amor! Nem juras, laços, ou espaço,

São para ti dor, nó ou prisão,

Pois és tudo, e tudo o mais é teu.


‘Quando impressionas, de que valem os preceitos

De um mau exemplo? Quando te inflamas,

Quanto pesam os impedimentos

Da riqueza, do temor filial, da lei, da família, da fama!

As armas do amor são a paz, contra as regras, o bom-senso e a vergonha,

E adoça, nas dores do sofrimento que suporta,

Os bálsamos de todas as forças, choques e medos.


‘Agora todos esses corações que de mim dependem,

Ao sentirem se partir, gemem, sangram e sofrem;

E suplicantes seus suspiros estendem a ti,

Para abandonar o ataque que lanças sobre mim,

E que dês ouvidos aos meus doces desígnios,

E entregues a alma ao teu voto inquebrantável

Que irás preferir e aceitar a minha lealdade’.


Dito isso, os olhos úmidos escorreram,

Que tinha até então presos nos meus;

Rolando um rio em cada face

Uma corrente salgada a jorrar da fonte:

Ó, como era gracioso o canal deste rio!

Cristalizando no brilho das rosas

A chama guardada em suas cores.


‘Ó, padre, quanto encantamento cabe

Numa pequenina lágrima!

Ao inundarem-se os olhos

Que coração de pedra não cede à água?

Que peito frio não se aquece?

Ó, que efeito nefasto! Frio pudor, cólera ardente,

O ardor que se extingue com o gelo.


‘Pois, vê, sua paixão, era a arte do engano,

Que fez minha razão desfazer-se em pranto;

Fez-me rejeitar meu voto de castidade,

Afastei meu juízo e meus medos;

Aparecer para ele, como ele aparece para mim,

Todo choroso; embora as lágrimas fossem diversas,

Ele me envenenou, e as minhas o justificaram.


‘Nele, a plenitude de uma questão sutil,

Aplicada à ficção, recebe todas as formas estranhas,

De rubor, ou copiosas lágrimas,

Ou palidez absurda; e ele toma e se vai,

Em ambos os casos, como melhor lhe convém,

Corar em discursos se iguala a chorar na tristeza,

Ou empalidecer e desmaiar em fingimentos trágicos.


‘Nunca houve um coração

Que escapasse ao ataque de sua mira doentia,

Mostrar-se bom é tão gentil quanto educado;

E, velado, ele conquista quem irá ferir:

Contra o que busca, ele exclama;

Quanto mais lhe arde o coração em luxúria,

Mais ele prega a pureza e elogia a castidade.


‘Assim, apenas com as vestes da Graça

Encobria o autêntico e oculto demônio;

Para que as ingênuas moças dessem espaço ao tentador,

Que como um querubim voava sobre elas.

Quem, sendo jovem e pura, recusaria este amor?

Pobre de mim! Aceitei e, contudo, questiono:

O que devo fazer novamente neste caso.


‘Ó, infecta umidade de seus olhos,

Ó, falso fogo que em seu rosto ardia,

Ó, forjado trovão que de seu coração subia,

Ó, triste alento que de seus pulmões soprava,

Ó, toda a emoção roubada que me iludia,

De novo trairiam esta que já foi traída,

E de novo perverteria a dama arrependida!’


Tradução: Thereza Christina Rocque da Motta